Olá! Eu sou o Chico Canella e essa é Um bom dia para uma boa semana! Uma newsletter quase semanal sobre temas quase cotidianos.
Lembra quando você comprava um sacolé (din-din, geledinho, chope, todos nomes da mesma coisa) na tia da esquina e pagava X reais e de um dia para o outro, sem mais nem menos, custava 3X e o que mudou aparentemente foi a adição de Gourmet na placa do Sacolé da Tia?
Então, estamos fazendo isso com os sentimentos.
O processo da gourmetização chegou para oferecer ao grande público uma experiência melhor e mais sofisticada de produtos já conhecidos, como por exemplo, o café. E isso acaba tendo dois lados. Em um deles, temos realmente uma experiência ruim padronizada. No exemplo citado, o café tradicional e extra-forte, nosso café do dia-a-dia, são muito ruins. O grão ou o pouco que tem de grão ali precisa ser torrado intensamente para esconder o sabor ruim e tudo que não é grão de café que ali vai junto. Então, o café gourmet é um tipo de café com grãos mais selecionados, proporcionando uma experiência melhor ou pelo menos mais fidedigna do café.
Por outro lado, é muito simples, ao notarmos essa possibilidade, fazer um rebrand da nossa marca de café e colocar gourmet na frente para entrar nesse hype. E nesse caso, não há em si uma reflexão sobre produto e qualidade, mas sim uma postura para maquiar uma situação. To te empurrando um produto m*rda e falando que é demais!
Na era das redes sociais, há uma tendência crescente de transformar emoções e experiências pessoais em produtos sofisticados, prontos para consumo público. Essa é uma das "gourmetizações" dos sentimentos que surge da necessidade de validação externa e da pressão para exibir uma vida perfeita. Cada momento é cuidadosamente editado e compartilhado, buscando aprovação na forma de curtidas e comentários.
Existe uma outra forma, digamos mais trabalhosa, de gourmetização envolvendo selos. Voltando ao café. Quem determina que um café é tradicional, gourmet, especial ou micro-lote? Existe uma avaliação feita por um órgão que carimba um selo na embalagem do produto. Um selo que fica meio escondido? Sim. Esse órgão acaba permitindo que na embalagem tenham escrito palavras que desviam nossa atenção? Sim também.
Outro dia desses scrollando nos reels, vi um vídeo de uma mulher falando sobre encontros. Para ela, se a pessoa não faz terapia, isso é um impeditivo para esse encontro seguir em frente. E isso me pegou legal. Sou completamente do time terapia. Faço há 20 anos e justamente por isso, sei de como essa elaboração é complexa. Isso inclusive vem martelando minha cabeça e vou falar sobre isso num vídeo em breve. Mas voltando, por lembrar do paciente que já fui não consigo afirmar que se relacionar com uma pessoa que faz terapia seja suficiente, nem que não fazer terapia seja suficiente para não se relacionar.
Isso é só um exemplo de como a experiência gourmet pode gentrificar o espaço entre nós. Um espaço maquiado, mascarado e com tantas camadas que não acessamos. É só compararmos - SEM MORALISMO - quantas vezes ficamos pelados na frente de alguém e trocamos fluídos X quantas vezes nos despimos de nossas máscaras e trocamos sentimentos, inseguranças, vontades e por ai vai.
A gourmetização dos sentimentos cria um paradoxo: quanto mais tentamos tornar tudo uma experiência grandiosa, menos autênticos nos tornamos. Nossos sentimentos acabam editados e embalados para consumo próprio e alheio. Como se cada emoção precisasse ser digna de um storytelling sofisticado, com narrativa bem construída, estética bem pensada e até trilha sonora escolhida a dedo. Criamos versões cinematográficas daquilo que sentimos, mas, no processo, perdemos a verdade das emoções, aquela que acontece sem roteiro ou iluminação perfeita.
Mas a verdade é que nem tudo precisa ser extraordinário. Até porque, se tudo for extraordinário nada será. A vida acontece no meio termo, na rotina, nas emoções cruas, sem necessidade de legenda inspiradora. É no café (gourmet ou não) quente queimando a língua tomado com pressa, no transporte público, no riso inesperado de uma piada boba que moram as experiências mais reais de estar vivo. São esses instantes despretensiosos, muitas vezes invisíveis para os filtros e edições, que de fato nos conectam ao que é genuíno.
E você, já sentiu essa pressão de "embelezar" o que sente? Vamos trocar uma ideia sobre isso? Se gostou do papo, compartilha com alguém que pode se identificar.
Foto de capa: Jeanne Yépez
Tenho a mesma impressão, Chico. E imagino que esse fenômeno seja produto da vida virando post. Todos querem que o próprio momento seja mais único, mais belo e diferente de todo resto. Todo mundo quer mostrar que importa. Eu sinto que são dois lados: um no qual você quer mostrar que a sua vida importa e que você também tem boas e únicas histórias pra compartilhar. O outro, o lado que você se sente obrigado a gourmetizar a vida e suas relações pra fazer parte desse jogo todo.
Sei lá, muito doido isso
Amei as ideias ✨