Quantos garotos cabem dentro de um homem?
Ou como "são só garotos" estabelece a não-necessidade de amadurecimento no homem.
Eu sou o Chico Canella e estamos aqui em mais Um bom dia para uma boa semana.
“Mesmo aos trinta e um anos de idade, nunca tinha se livrado daquilo, de ser um garoto. Por quanto tempo se sentiria um garoto? Seriam os garotos homens? Seriam os homens garotos? Será que ele seria homem pela maior parte da vida, ou será que ainda não passava de um garoto? E quantos garotos cabiam dentro de um homem? Dormiu sem saber resposta alguma.” (Homens pretos (não) choram - pág. 54 - Stefano Volp)
Esse trecho do conto Vitrine me pega sempre que leio. E sempre que releio lembro da música do Leoni. Ao começar a pesquisar cai num vídeo no YouTube que me lembrou que Leoni foi do Kid Abelha e que a música dele, na verdade se chama Garotos II - O Outro Lado. Por ser uma resposta a Garotos do Kid Abelha. “Garotos perdem tempo pensando / Em brinquedos e proteção / Romance de estação / Desejo sem paixão / Qualquer truque contra a emoção”. E essa última estrofe fala muito do sentimento que o livro me desperta também. Como nossa sociedade patriarcal educa e separa os garotos da sua sensibilidade e responsabilidade. Garotos II seria a resposta de Leoni, seria a visão dos homens. E tem o clássico refrão: ‘Perto de uma mulher são só garotos”. Mais um traço dessa infantilização/segmentação num recorte de gênero muito forte.
E tantos são os exemplos vistos e vividos por nós. Garotos não choram, garotos não falam de suas emoções, garotos se afogam em silêncios e em suas contradições. Ao assumirmos grandes responsabilidades com inconsequência, sempre temos uma atitude juvenil que se bem sucedida nos ergue no mais alto patamar da glória e se falha nos garante algum colo para chorarmos nossas mágoas. Menino, garoto, mancebo, jovem, são todas formas de não dizer homem. Até quando somos garotos? Será que ele seria homem pela maior parte da vida, ou será que não passava de um garoto?
Quando garotos viram homens? Quando as responsabilidades serão assumidas de forma madura e tratadas como atitudes que fazem parte de uma educação necessária? A responsabilização de nossos atos frente as outras e outros. Seja respondendo por crimes cometidos, como o caso do jogador de futebol Daniel Alves, cuja convocação para a copa do Qtar gerou mais frisson na internet do que o caso de estupro protagonizado por ele. Ou mesmo o técnico Cuca, que pediu demissão essa semana do Corinthians, condenado por um estupro ocorrido em 1987 numa excursão do Grêmio a Europa. Que pelo mesmo motivo que o jogador Robinho só não cumpriu a pena por conta do Brasil não extraditar seus cidadãos.
Não quero criar aqui um caso contra jogadores de futebol e dizer que eles são os garotos dos garotos. Mas a certeza de certas impunidades era e segue sendo (de alguma forma) a mantenedora do bastião dos garotos mimados que não podem ser contrariados. E quero frisar aqui como isso também é uma marca forte do homem-branco-heterossexual ditador das regras do jogo. Um jogo no qual detém o capital, a possibilidade de mudança e se resguarda de todas as formas até que criemos outras maneiras de lidar com tudo isso.
Obviamente não quero esquivar dos homens negros nem da culpa ou de suas responsabilidades. Fomos e somos garotos mais do que homens na maior parte das vezes. Mas o ideal cunhado ao redor da branquitude, faz com que a tentativa de seguir esse modelo seja sempre reproduzida. Seja almejando o sucesso financeiro a qualquer custo, a objetificação das pessoas ao nosso redor (principalmente as mulheres) e essa noção de possibilidade de tomar pra si, conquistar, ou melhor, colonizar os corpos da forma mais interessante para o colonizador.
A transformação de garotos em homens passa definitivamente pela reestruturação do que é ser homem. Desse vir-a-ser. Da forma como formatamos não dá certo. Homens precisam ser vulneráveis e não fortalezas imbatíveis. Homens precisam pensar antes de falar. Homens precisam ouvir e não só esperar sua vez de falar. Homens precisam se empenhar mais e não só contar com as vantagens e brotheragens. Homens precisam se admirar mais não de forma narcísica, mas empática e afetiva. Demonstrar afeto, demonstrar carinho. Respeitar as mulheres na sua complexidade e diferença. Respeitar as diferenças, por mais que ainda não as entenda. Homens precisam se esforçar. E não só esperar tudo pronto. Homens precisam coletivizar suas questões e aqui não me refiro a questões pessoais e sim as questões de classe. As questões que concernem a todos os homens. Aqui ressalto a importância dos grupos reflexivos como o Memoh e outros que buscam viabilizar caminhos ativos para essas discussões. E as nossas pessoais a gente pode tratar como achar melhor. Seja na terapia, meditando, escrevendo newsletter ou como for mais confortável para cada um.
Caso vocês gostem das discussões aqui levantadas e tenham vontade de responder, realmente estou aqui para trocar essa ideia. Além disso, se gostarem do conteúdo, indiquem para amigos que vocês acreditam que se beneficiarão desse papo.
Ainda sobre o Cuca, a visão da Lilan Schwarcz é muito boa.