Eu sou o Chico Canella e estamos aqui em mais Um bom dia para uma boa semana.
Ainda pensando muito em tudo que vivemos na imersão Como criar pra si um corpo decolonizado e pensando nos efeitos da reflexão conjunta sobre alguns temas. Parece as vezes ser esperado das pessoas pretas, das mulheres e des membres da comunidade LGBTQIA+ posicionamentos sobre os problemas criados pela sociedade em relação as suas existências. Problemas esses só possíveis de existir devido a tão falada branco-cis-heteronormatividade. Esse padrão imposto pela colonização e perpetuado até hoje em nossa convivência social.
Todas essas questões derivam da delegação de problemas para outrem. Outra prática muito comum no capitalismo e que desde a colonização é muito utilizada. Possuir pessoas escravizadas era status de poder e riqueza. E todo o cuidado da casa, das crianças e da cozinha eram passadas para essas pessoas. A figura da ama de leite ou da mucama por exemplo, ilustram bem a imagem. Quando caminho pelo Parque Guinle em Laranjeiras ou no Shopping Rio Sul vejo muito mais babás do que via no Parque Shopping Campo Grande ou na pracinha perto de casa lá. A zona sul do Rio de Janeiro perpetua um modelo escravocrata até hoje, sei que não só a zona sul, mas muito a zona sul.
Empregadas domésticas que estão na família a gerações, assim como escravizados que passavam de mãe para filha quando esta se casava e deixaria o lar. Uma prática que não passa pela reflexão coletiva e que de alguma forma foi abordado no filme Que horas ela volta? de Anna Muylaert. Quando você googla o título aparece assim:
“A pernambucana Val se mudou para São Paulo com o intuito de proporcionar melhores condições de vida para a filha, Jéssica. Anos depois, a garota lhe telefona, dizendo que quer ir para a cidade prestar vestibular. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, porém o seu comportamento complica as relações na casa.”
Vocês que assistiram o filme tem essa impressão também? Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos. O pai da família até recebe, pois logo tem um interesse sexual por Jéssica. Porém não é o comportamento de Jéssica que complica as relações na casa.
Há muito o que se debater coletivamente sobre como acabamos nos organizando. Há muito o que entender, o que problematizar, responsabilizar e mudar. Mas esses temas precisam ser abraçados pelas pessoas que produzem e reproduzem esses costumes. E precisamos de decisões sendo tomadas na base. Como cumprimento da lei 10.639/03 que obriga as escolas o ensino de história e cultura afro-brasileira. E o desenvolvimento e garantia do cumprimento de leis que deem mais segurança a pessoas trans, mulheres, pretas e pretos nesse nosso Brasil.
Sem mudança de base não dá para jogar nos movimentos negros, LGBTQIA+ ou feministas a responsabilidade de transformação na sociedade, até porque o que reconhecemos como avanços pra todes foram brigas compradas por essas instâncias citadas. A lei de cotas não beneficia só pessoas pretas, mas todos os alunos da rede pública. E por ai vai.
Fica aqui mais um desabafo do que propriamente um texto propositivo. Porém acredito ser mais uma daquelas conversas que precisamos abrir e manter abertas.
Caso vocês gostem das discussões aqui levantadas e tenham vontade de responder, realmente estou aqui para trocar essa ideia. Além disso, se gostarem do conteúdo, indiquem para amigos que vocês acreditam que se beneficiarão desse papo.
O comportamento da Jéssica incomodava a família que a recebe em São Paulo porque foi esperado que ela perpetuasse a atitude de servidão… tanto que quando ela passa na segunda fase da fuvest e o filho deles não, isso abala todo mundo. Que sigamos contradizendo o que esperam de nós!
Adorei o texto, Chico! Você me fez pensar em duas coisas: 1. A certeza de que os grupos dominantes “merecem” ser dominantes é tão forte no Brasil que muitos grupos dominados nem concebem a ideia de uma sociedade mais igualitária.
Muitas empregadas domésticas não acreditam na possibilidade de um dia serem tratadas pela sociedade com o mesmo respeito que as patroas.
A noção de que um homem branco rico que usa terno (tipo os chefes das Lojas Americanas que cometeram um crime financeiro gigante) merece ser tratado melhor pela Polícia do que uma pessoa negra que usa boné (tipo os caras que tão no comércio varejista de drogas) é muito enraizada na gente.
2. Por essa naturalização da dominação é tão comum a ideia de que o pobre tá causando incômodo no rico e cabe a ele se adaptar pra poder existir (e vender sua força de trabalho) no mundo que pertence aos ricos.
Quem “tá certo” é o rico, é o homem, é o hétero, é o branco, é o cristão - cabe às minorias políticas incomodarem o mínimo possível. Só assim “ganharão” a possibilidade de viver com direitos mínimos.